Sobre a imprescindibilidade da utilização dos meios processuais adequados para o tratamento isonômico das partes, destaca Clementino (2016, p. 100):
O processo é o substituto da vontade individual no direito público. Como as instituições públicas não têm vontade psíquica, a vontade estatal é expressa através do processo. Como, por outro lado, a vontade estatal não pode se confundir com a vontade do agente público, ela é procedimentalizada. Ora, essa procedimentalização tem por objetivo resguardar que, na expressão da vontade estatal, sejam respeitados os valores essenciais da ordem jurídica, dentre os quais a isonomia […] Assim, não basta que o agente público observe a isonomia quando competente para emissão da vontade estatal, é preciso que o próprio procedimento tenha aptidão para induzir a isonomia.
Ainda segundo Clementino (2016, p. 48), “resguardar a isonomia no funcionamento das instituições é mais do que uma finalidade jurídica em si, pois consiste também em pressuposto democrático.”[2]
O Incidente de Resolução das Demandas Repetitivas (IRDR), com previsão no art. 976 do CPC, e a ferramenta do sobrestamento dos recursos repetitivos, cujo fundamento encontra-se no art. 1036 do CPC, visam, dentre outros objetivos, a conservação da isonomia no tratamento de casos congêneres e a otimização dos julgamentos.
Explicando de forma sucinta o funcionamento dos dois métodos processuais de julgamento, após ser verificada a multiplicidade de litígios envolvendo um mesmo assunto, são adotadas as respectivas disposições legais pertinentes, ocorrendo decisão uniforme de todas as lides mediante julgamento reduzido em um só acórdão.
Por isso ambos podem contribuir para aprimoramento dos serviços de saúde pública no Brasil, consoante será exposto nos tópicos a seguir.
Incidente de Resolução das Demandas Repetitivas (IRDR) a favor da saúde pública no Brasil
O primeiro Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas foi julgado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ/SC) no ano de 2016, tendo como caso paradigma situação em que o autor buscou tutela jurídica para garantia do fornecimento de medicamento não incluso na lista oficial do SUS.[3]
Conforme informações prestadas pelo Tribunal de Santa Catarina, tal julgamento afetou quase 30 mil outros casos semelhantes. Na época, pelo menos 800 novos litígios eram mensalmente protocolados junto à Justiça de Santa Catarina. Os tratamentos concedidos mediante ações judiciais do Tribunal custavam ao Estado R$ 160 milhões, de um total R$ 2 bilhões destinados ao orçamento anual total da pasta da saúde, ou seja, a judicialização da saúde consumia o equivalente ao percentual de 20% do total da verba existente. [4]
Como resultado, em acórdão firmou-se duas teses atualmente balizadoras das decisões a serem proferidas em outros casos similares levados a conhecimento do respectivo Tribunal.
A primeira tese firmada tratou dos casos em que o tratamento postulado judicialmente já encontra previsão no rol do SUS. Após julgamento, foi determinado que para concessão da tutela jurisdicional de obrigação de fazer são exigidos apenas os requisitos do binômio necessidade-adequação, devidamente comprovados por médico, além da demonstração da tentativa infrutífera de concessão pela via administrativa.
A segunda tese tratou dos casos em que não há previsão do tratamento no rol do SUS. Após julgamento pacificou-se que deve ser feita análise preliminar entre a ligação do caso concreto e o valor da dignidade da pessoa humana, sob o viés do conceito de mínimo existencial. Após averiguação deste requisito inicial, restando presente tal ligação, deve ser também demonstrada a hipossuficiência do autor da ação, bem como deve ser verificada ausência ou ineficiência de política pública correspondente já integrada ao SUS, além da necessária prova da real necessidade do fármaco. Caso contrário, sendo negativa a análise da ligação entre o pedido judicial e os valores do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana confrontado com o Princípio do Mínimo Existencial, serão levados em conta valores como proporcionalidade, necessidade e adequação, além do Princípio da Reserva do Possível, ponderando-se eventual colisão de princípios.
Sobre essa segunda tese, a razão para estabelecimento de critérios mais específicos foi embasada na informação, apurada pelo Tribunal, de que 90% dos autores desse tipo de ação não eram hipossuficientes, em que pese o pedido de fornecimento gratuito em face do Sistema Único de Saúde. Assim, buscou-se poupar o orçamento do SUS. dando prioridade à efetivação dos tratamentos pela via judicial àquelas pessoas que realmente nao poderiam pagar pelo tratamento postulado.
Inobstante o progresso auferido pelo TJ-SC, tais entendimentos repercutiram exclusivamente em face dos processos do respectivo estado. Ocorre que no CPC, nos termos do art. 982, § 3º, há previsão da possibilidade de ampliação da abrangência do IRDR, desde que visando maior garantia jurídica. Para tanto, podem os mesmos legitimados ao pedido de instauração do incidente arguirem ao tribunal a suspensão em nível nacional de todos os processos que versem sobre mesma questão. Inclusive outras partes estranhas ao processo paradigma também poderão requerer tal suspensão, independente do limite territorial, contanto que componham outras lides sobre mesma questão objeto do incidente já instaurado, conforme art. 982, § 4º, do CPC. Uma vez concedida abrangência nacional ao incidente de resolução de demandas repetitivas, após julgamento far-se-á precedente a ser respeitado por todos os tribunais brasileiros, representando tratamento isonômico e adequado funcionamento do SUS.
Portanto, nos processos de saúde pública, ao serem constatadas muitas demandas repetitivas, imperiosa instauração do incidente de resolução das demandas repetitivas, juntamente com o pedido de suspensão de todos os processos congêneres a nível nacional, até que seja decidido o caso paradigma que vinculará e uniformizará toda a jurisprudência sobre suposto tratamento do SUS.
Demonstrada concretamente a contribuição do IRDR, insta abordar a ferramenta processual do sobrestamento de recursos, utilizada diretamente em sede dos Tribunais Superiores.
Sobrestamento de recursos a favor da saúde pública no Brasil
Nos arts. 1036 a 1041 do CPC encontra-se o regulamento dos julgamentos dos recursos extraordinário e especial repetitivos, qual conta com a ferramenta denominada sobrestamento de recursos. Esse artifício nada mais é do que a suspensão de todos os recursos congêneres em tramite no país, para que aguardem até julgamento de um recurso tido como representativo de controvérsia pelos Tribunais Superiores, quando ocorrerá o desfecho de todos os processos sobrestados de acordo com uma única decisão a ser seguida.
Cada um desses recursos repetitivos é intitulado por um tema, sendo fixados qual o cerne da questão, bem como qual a tese pacificada após julgamento.
O Tema n. 106 do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, submeteu a julgamento o dever do Poder Público em fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, elucidando os seguintes pontos. [5]
Para fornecimento dos fármacos, foram consolidadas as exigências das comprovações da necessidade do tratamento e da ineficácia dos fármacos já fornecidos pelo SUS, a serem demonstradas por atestados médicos; da comprovação da hipossuficência financeira para custear o medicamento postulado; do registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA); e, por fim, e da devida observância dos usos autorizados pela mesma Agência.
Ficou decidido também que, posteriormente ao trânsito em julgado de cada decisão, fosse comunicado o Ministério da Saúde e a Comissão Nacional de Tecnologias do SUS, com a finalidade de ser providenciado estudo quanto à viabilidade da incorporação, junto ao rol de tratamentos fornecidos pelo SUS, do medicamento postulado em juízo.
No que tange à modulação dos efeitos do julgamento, os novos critérios foram aplicados apenas a partir das demandas supervenientes, distribuídas após a data do julgamento do Tema sobrestado.
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal reconheceu em 03.12.2007 repercussão geral à controvérsia “dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo”, gravada sob Tema n. 06 do STF, suspendendo todos os processos envolvendo o mesmo assunto em âmbito nacional. [6]
Nesse último caso chama atenção a extrema demora na resolução do Tema, pois até o momento a questão não encontrou seu desfecho, muito embora outras 26.560 ações similares estejam suspensas aguardando o julgamento.[7]
Situação parecida também é vista no Tema n. 500 do STF, que versa sobre o “dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela ANVISA”, cujo reconhecimento da repercussão geral ocorreu no ano de 2011, mas ainda está pendente de julgamento.[8]
São casos nos quais a ferramenta processual do sobrestamento de recursos poderia ter contribuído para atividade judicial benéfica ao quadro da saúde pública brasileira, mas por motivos estranhos à lei até o momento não representaram progressos, fazendo perpetuar a desigualdade de tratamento em desfavor dos usuários do SUS.
Por fim, sobre os efeitos negativos do tratamento desigual no âmbito judicial, o jurista Clementino (2016, p. 50) enfatiza que “quando se oferecem respostas diferentes para problemas iguais sem fundamento justificável, a tendência é que não haja conformação com a decisão judicial, colocando em xeque a estabilidade do sistema judiciário e a legitimidade democrática da prestação jurisdicional.”
Destarte, diante de tudo o que foi exposto, a conclusão é de que o instituto do Incidente de Resolução de Demandas Repetivas e a ferramenta processual do sobrestamento de recursos representam grande importância para a saúde pública no Brasil, sendo essencial que o Judiciário atue de forma ainda mais eficiente na busca pela isonomia dos tratamentos ofertados pelo SUS.
REFERÊNCIAS
[1] CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. As demandas repetitivas de direito público e o princípio da procedimentalização da isonomia Devido Processo nas Demandas de Direito Público. In: Vânila Cardoso André de Moraes (Coord.). As Demandas Repetitivas e os Grandes Litigantes: possíveis caminhos para a efetividade do sistema de justiça brasileiro. ISBN 978-85-7248-184-7. Brasília. Enfam, 2016. Disponível em: <https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2016/08/Demandas_repetitivas__Vanila_Cardoso.pdf>
[2] Idem
[3] BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ação de Obrigação de Fazer. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n. 0302355-11.2014.8.24.0054/50000. Luiz Carlos da Silva e Estado de Santa Catarina. Relator: Desembargador: Ronei Danielli. 09.nov.2016. Disponível em: <“>http://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2016/11/IRDR-medicamentos.pdf>; Acesso em: 02.abr.2019
[4] POTTER, Hyury. Em decisão inédita, TJSC determina que poder público deve arcar com despesas com medicamentos. Disponível em: <“>http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2016/11/em-decisao-inedita-tjsc-determina-que-poder-pub…; Acesso em: 02.abr.2019
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção define requisitos para fornecimento de remédios fora da lista do SUS. Disponível em: <“>http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/comunicacao/noticias/noticias/Primeira-Seca3-define-re…; Acesso em: 03.abr.2019
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Obrigação de Fazer. Recurso Extraordinário n. 566471. Carmelita Anunciada de Souza e Estado do Rio Grande do Norte. Relator: Ministro: Marco Aurélio. Disponível em: <“>http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=2565078&am…; Acesso em: 03.abr.2019
[7] Idem.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Obrigação de Fazer. Recurso Extraordinário n. 657718. Alcinere de Oliveira e Estado de Minas Gerais. Relator: Ministro: Marco Aurélio. Disponível em: <“>http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4143144&am…; Acesso em: 03.abr.2019
[9] Ibid., p. 50.