Análise sobre as faces do direito constitucional à saúde, seu fornecimento de forma gratuita e o correspondente financiamento do SUS.
Direito fundamental à Saúde
Nos moldes da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o Estado Democrático do Brasil foi estabelecido com os objetivos de assegurar direitos sociais e individuais, assim como o bem-estar social. Tanto é assim que os direitos e garantias individuais, tais como o direito à vida, foram resguardados inclusive por meio de cláusulas pétreas.[1]
Por sua vez, o direito à saúde foi positivado no art. 6º, do Capítulo II (Dos Direitos Sociais), que está contido no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) da mesma Lei Maior.
Os direitos fundamentais sociais, grupo que engloba a saúde pública, tambem conhecidos como Direitos de Segunda Dimensão, são conceituados por Sarlet (2012, p. 32) como “os direitos a prestações sociais estatais, como a assistência social e saúde, que correspondem às reivindicações das classes menos favorecidas”.[2]
A jurista Cibele (2008, p. 71) descreve o direito à saúde como “um conjunto complexo e multidimensional de posições jurídicas destinadas a assegurar uma vida com dignidade visando à busca do pleno bem-estar físico e mental do indivíduo”.[3]
Referindo-se às características do direito constitucional à saúde, o ministro Celso de Mello, mediante julgamento do Agravo de Instrumento 452312/RS[4], esclarece os seguintes pontos:
O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, inconstitucional.
Neste diapasão, decorrente da prerrogativa definida no art. 5º, § 1º, da CF de 1988, a aplicabilidade imediata dos dispositivos que disciplinam os direitos fundamentais é devida também ao direito à saúde. Assim, há garantia da prestação independentemente da existência de legislação infraconstitucional.
A saúde é tratada como direito de suma importância, de modo que a CF/88 destinou tópico específico para cuidar do tema. Nos termos da Seção II, que versa exclusivamente sobre o trato da saúde, o art. 196 dispõe sobre os compromissos e os deveres do Estado, mediante políticas sociais e econômicas, para reduzir o risco de doença e outros agravos, bem como para concretizar o acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção desse direito.
O direito fundamental à saúde advém do ideal maior da seguridade social, definido no art. 194 da mesma Constituição como o conjunto das ações dos Poderes Públicos e da sociedade para assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social.
Percebe-se que em última instância todos estes direitos acima vislumbrados decorrem do valor da dignidade da pessoa humana, que reflete por todo o ordenamento jurídico brasileiro. Sobre o tema, Carvalho (2007, p. 549) pontua que “a dignidade da pessoa humana é o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base nesta é que devem aqueles ser interpretados.”[5]
Dentre as diversas facetas do direito fundamental à saúde, tem-se a sua prestação de forma pública pelo Sistema Único de Saúde.
Prestação do direito fundamental à saúde pública pelo Sistema Único de Saúde
A saúde pública para todos foi instituída a partir da Constituição Federal de 1988, e deve ser efetivada por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). O funcionamento do sistema foi consolidado pelas Leis n. 8080/90[6], que versou sobre as condições, organização e o funcionamento dos serviços de saúde, e n. 8142/90[7], qual abordou a participação da comunidade na gestão do SUS, bem como as transferências intergovernamentais de recursos financeiros para melhor efetivação dos deveres legais impostos ao SUS.
A análise da CF e das Leis acima citadas resulta na conclusão de que o SUS possui como funções prioritárias a regulação, a fiscalização, o controle e a execução da saúde pública. Sob a égide destas primeiras premissas fundam-se as diretrizes e os princípios fundamentais do sistema de saúde, resumidos através dos binômios eficiência-qualidade e gestão-financiamento.[8]
Sobre o primeiro binômio, eficiência-qualidade, os ideais adiante elucidados podem ser extraídos: (I) universalidade, de modo que o direito à saúde deve ser prestado a todos, vedada a discriminação. Aqui, cabe o adendo que no período anterior à vigência da CF de 1988 a prestação era restritiva, garantindo saúde exclusivamente aos trabalhadores vinculados à previdência social, englobando tão somente aproximadamente 30 milhões de pessoas, enquanto que o restante ficava sob responsabilidade das entidades filantrópicas; (II) igualdade, pois a saúde deve ser destinada com a mesma qualidade para todos que buscam o serviço; (III) integralidade, visando a prestação do serviço sob a égide das vertentes de promoção, proteção e recuperação da saúde; (IV) intersetorialidade, analisando o serviço sob a ótica dos diversos fatores econômicos e sociais; (V) direito à informação, tanto do estado clínico do paciente, quanto dos tratamentos disponíveis; (VI) autonomia dos usuários, para optar pelo tratamento que lhes convém; (VII) resolutividade, buscando a maior capacitação para resolver os problemas clínicos em todos os níveis de assistência; e, (VIII) epidemiologia, com o estudo das causas da propagação e difusão de doenças, relacionando-as com as taxas de mortalidade do país.[9]
Sobre o segundo binômio, gestão-financiamento, podem ser ressaltados os valores abaixo expostos: (I) equidade, estabelecendo tratamentos prioritários àqueles que demandam, do ponto de vista técnico, maior urgência; (II) descentralização, dividindo a responsabilidade pelo serviço entre a União, os estados, Distrito Federal e os municípios; (III) complementaridade da saúde privada, definindo que o SUS poderá utilizar-se dos serviços de saúde privado, de acordo com a necessidade e impossibilidade de prestação dos serviços públicos; e, (IV) regionalização, definindo que nem todos os municípios poderão ser equipados com toda a tecnologia disponível, ensejando a organização do sistema com base em fatores externos.[10]
Conforme informações do Ministério da Saúde, em nível nacional a organização do Sistema Único é composta pelo próprio Ministério da Saúde, pela União, estados, Distrito Federal e municípios, sendo todos corresponsáveis pela efetivação do serviço.[11]
O Ministério da Saúde é gestor nacional do SUS, sendo o principal responsável em âmbito federal. Por isso tem como funções formular, normatizar, fiscalizar, monitorar, e avaliar políticas e ações em articulação com o Conselho Nacional de Saúde, atuando também no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) a fim de pactuar o Plano Nacional de Saúde. Sua estrutura é composta pela Fiocruz, Funasa, Anvisa, ANS, Hemobrás, Inca, Into, além de oito hospitais federais.[12]
As Secretarias de Saúde, por suas vezes, são específicas para a gestão no âmbito dos estados e Distrito Federal. O gestor estadual formula, coordena e realiza o atendimento em seu respectivo território, com devido respeito à normatização federal. [13]
Financiamento do SUS
De igual forma os municípios também são responsáveis pela execução das ações e serviços de saúde no âmbito dos seus respectivos territórios, sempre respeitando a normatização federal. Existe possibilidade da formulação de políticas próprias, bem como de parcerias para a aplicação de políticas nacionais e estaduais. Podem ainda ser estabelecidas parcerias com outros municípios para garantir o atendimento pleno da população, como por exemplo em hipóteses de procedimentos de alta complexidade, os quais não poderiam ser oferecidos se o município atuasse sozinho.[14]
O dinheiro utilizado na prestação da saúde pública advém das contribuições sociais, de diversas origens, nos termos do art. 196 da CF/88. Dessarte, para o financiamento são utilizadas contribuições como aquelas recolhidas por empregadores (empresas e entidades congêneres), trabalhadores e demais segurados da previdência social, além de outras contribuições das importações de bens e serviços.
Por força do Pacto Federativo a União repassa os valores, frutos dos recolhimentos supracitados, aos estados, Distrito Federal e municípios, enquanto os estados repassam valores aos municípios.[15]
Segundo redação do art. 198 da CF/88, que teve a sua redação inicial alterada por diversas emendas constitucionais, a União deve aplicar recursos mínimos calculados sobre a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento) do total.
No tocante aos percentuais definidos para os estados, Distrito Federal e municípios, lei complementar deve, em periodicidade de cinco anos, regulamentar os montantes a serem aplicados nos orçamentos da saúde correspondentes. Atualmente os valores são definidos pela Lei Complementar nº 141 de 2012.[16]
Recentemente, o orçamento da União sofreu alterações pela “PEC dos Gastos”. O assunto ganhou força em razão do desenfreado ritmo de crescimento dos gastos públicos, ascendo 864% entre os anos de 1997 até 2015, índice muito acima da inflação. Após aprovação, quando tal Proposta de Emenda à Constituição foi convertida na Emenda Constitucional n. 95 de 2016, ficou definindo teto máximo para os gastos, adstrito ao valor despendido no ano anterior ao início da vigência da Emenda. Tal Emenda terá duração por determinado prazo de vigência, a princípio, de 20 anos, embora possa haver prorrogação por mais 10 anos.[17]
Portanto, esta alteração da Constituição limita também os gastos destinados à saúde, uma vez que, via de regra, os únicos reajustes a serem feitos a cada exercício fiscal terão como parâmetros a inflação do ano anterior. Como exceção, por conveniência do Executivo pode haver investimento específico superior ao limite fixado, desde que em contrapartida sejam cortados gastos em outros setores, a fim de compensar eventual investimento extraordinário. Contudo, em nenhuma hipótese poderão ser abatidos valores do orçamento da pasta da saúde em favor de outras pastas.[18]
A racionalidade e eficiência aplicada ao manejo dos recursos para financiamento da saúde no Brasil é tema da grande interesse a todos, pois o colapso deste sistema afeta não só aqueles que dependem do tratamento público, mas também a todos os demais brasileiros prejudicados indiretamente pelo descontrole das finanças públicas.
A fim de contextualizar melhor a questão do financiamento do SUS, insta parafrasear a seguinte pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no ano de 2015. Dentre os dados levantados, foi apurado que o Estado gastou R$ 231 bilhões a título de consumo final de bens e serviços em saúde, enquanto que R$ 315 bilhões foram gastos pela iniciativa privada, incluídos os gastos das famílias brasileiras e das instituições sem fins lucrativos. Além disso, apurou-se que 50 (cinquenta) milhões de pessoas possuíam plano de saúde particular no Brasil, ou seja, um quarto do total da população.[19]
Outra pesquisa traçou comparação a nível internacional quanto aos gastos com financiamento em saúde pública em diversos países, trabalhando com informações oficiais divulgadas pelos respectivos sistemas de saúde de cada país participante. A conclusão foi de que, dividindo-se os valores totais informados pelos tamanhos das diferentes populações, o resultado brasileiro ainda é inferior à média mundial, indicando que aqui se gasta menos com saúde. No mais, o Brasil é o único país entre as dez maiores economias no qual os gastos privados, feitos pelos planos de saúde e famílias, superam os gastos públicos.[20]
No mesmo sentido, em 2013 foi publicado trabalho cujo objeto foi a análise da prestação de saúde pública em 40 países. O foco era no quesito eficiência alcançada pelo serviço, utilizando critérios como a expectativa de vida dos usuários e a média de custo das prestações, tomando por parâmetro o PIB (Produto Interno Bruto) per capita de cada uma das nações. No resultado o Brasil ficou com o último lugar do ranking.[21]
Anote-se que o SUS é financiado por recursos oriundos do recolhimento de diversos tributos, em que pese as comparações com outras potencias mundiais revelem que ainda é investido pouco em saúde no Brasil. Recentemente tais gastos sofreram limitação mediante estipulação de um teto para o orçamento da pasta, o que exige maior racionalização dos recursos por parte da gestão.
Diante do exposto, a conclusão é de que direito fundamental à saúde, como direito social de segunda geração, exige prestações positivas do Estado para que as pessoas possam usufruí-lo.
No Brasil, tais prestações positivas são efetivadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Diversas são as premissas que balizam as políticas públicas do SUS, como por exemplo o objetivo da igualdade.
O SUS é financiado por contribuições sociais de diversas fontes. Tais contribuições são previamente definidas em lei, sendo estipulados percentuais em relação aos tributos recolhidos pela União, estados, Distrito Federal e municípios. Além disso, conforme pacto federativo, a União e os estados também fazem repasses, destinados ao financiamento da saúde, aos seus órgãos executivos inferiores. Contudo, ainda sim, as pesquisas a nível mundial apontam baixos índices em relação ao valor de investimento e aos resultados da qualidade de saúde pública no Brasil
REFERÊNCIAS
[1] BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituição/ConstituicaoCompilado.htm>; Acesso em: 02.abr.2019.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucionais. 11ª ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2012.
[3] MATEUS, Cibele Gralha. Direitos fundamentais sociais e relações privadas: o caso do direito à saúde na Constituição brasileira de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 452312. Município de Porto Alegre. Cláudia Padaratz e Outros. Cleomir de Oliveira Carrão. Relator: Ministro: Celso de Mello. Data de Julgamento: 31/05/2004, Data de Publicação: DJ 23/06/2004 PP-00019
[5] CARVALHO, Kildare Gonçalves Carvalho. Direito Constitucional. 13. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
[6] BRASIL. Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>; Acesso em: 21.abr.2019
[7] BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm>; Acesso em: 21.abr.2019
[8] CARVALHO, Gilson. A Saúde Pública no Brasil. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000200002>;
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Ministério da Saúde. Sistema Único de Saúde (SUS): estrutura, princípios e como funciona. Dados disponíveis em: <http://portalms.saúde.gov.br/sistema-único-de-saúde>; Acesso em: 04.abr.2019
[12] Idem.
[13] Idem.
[14] Idem.
[15] Governo do Brasil. União, estados e municípios têm papéis diferentes na gestão do SUS. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2014/10/o-papel-de-cada-ente-da-federacao-na-gestao-da-saúde-pública>; Acesso em: 02.abr.2019
[16] BRASIL. Lei Complementar n. 141 de 2012. Regulamenta o § 3o do art. 198 da Constituição (…). Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp141.htm>; Acesso em: 04.abr.2019
[17] BLUME, Bruno André. Como funciona o teto de gastos públicos?. Disponível em: <https://www.politize.com.br/teto-de-gastos-publicos-infografico/>; Acesso em: 08.nov.2018
[18] Idem.
[19] OLIVEIRA, Neimar de. Gastos com saúde crescem mesmo em meio a crise e atingem 91 % do PIB. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/gastos-com-saúde-crescem-mesmo-em-meio-criseeatingem-91-do-pib> Acesso em: 08.nov.2018.
[20] BLUME, Bruno André. Quanto o governo investe em saúde e educação?. Disponível em: <http://www.politize.com.br/quanto-governo-investe-saúde-educacao/> Acesso em: 05.nov.2018
[21] FUENTES, André. Em ranking sobre a eficiência dos serviços de saúde Brasil fica em último lugar. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/impavido-colosso/em-ranking-sobreaeficiencia-dos-servicos-de-saúde-brasil-fica-em-ultimo-lugar/> Acesso em: 07.nov.2018.