Ao proferir decisões que atinjam maior número de pessoas, as tutelas coletivas manifestam a característica da economia processual

Ação Civil Pública

 Dentre as diversas modalidades de demandas transindividuais, neste estudo dar-se-á ênfase à Ação Civil Pública. Segundo Almeida (2009), na Ação Civil Pública (ACP) busca-se “a cessação de atividade nociva a interesse público, coletivo ou individual homogêneo ou a recomposição do bem lesado, restituindo-se ao status quo ante.”

 A ACP encontra previsão jurídica no ordenamento brasileiro através da Lei n. 7347 de 1985. Conforme respectivo art. 1º, são tuteladas as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados contra interesses difusos. [2]

 Quanto ao mencionado conceito de interesses difusos, o art. 81, parágrafo único, inc. I, do CDC define como todos aqueles direitos transindividuais, de natureza indivisível, sob titularidade de pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. [3]

 No tocante à amplitude dos efeitos da sentença proferida em sede da ACP, o art. 16 da Lei n. 7347 de 1985 prevê que a coisa julgada terá abrangência erga omnes. Contudo, o mesmo dispositivo impõe a limitação dos efeitos à competência territorial do órgão prolator, ponto que será criticado de forma ampla adiante.

 Sobre o efeito erga omnes das decisões proferidas em sede da Ação Civil Pública, Carvas explica que não há limitação “somente àqueles que atuaram diretamente na demanda. Isso porque a parte da demanda coletiva leva a juízo interesse metaindividual, representando os seus titulares. Por este motivo, a coisa julgada atingirá também os representados. (apud GRINOVER, 2011, p.177)”. [4]

A utilização da Ação Civil Pública em benefício da saúde pública no Brasil

 Por as ACP’s tutelarem direitos difusos, é possível a utilização desta ferramenta para buscar proteção ao direito à saúde pública. Neste sentido, Madeira (2018, p. 200) leciona a respeito da ligação entre os temas da ação civil pública e saúde pública, explicando que tal ação é um instrumento processual conferido a determinadas partes legitimadas para “defesa dos interesses individuais indisponíveis, atinentes ao tratamento médico, em razão da omissão ou do descumprimento do dever constitucionalmente dirigido ao Estado brasileiro.”  

 Logo, o campo de discussão propiciado pela ACP é mais adequado para abordagem das políticas públicas de saúde quando comparado com o campo propiciado pela ação individual, consoante defende Neto (2010):

As demandas coletivas têm caráter político, refletem a cobrança da sociedade em relação aos direitos assegurados pela Constituição. Os casos individuais, em princípio, não têm tal caráter. Todavia, na medida em que multiplicam-se as ações individuais com pedidos de internações e medicamentos, por exemplo, seu deferimento pelo judiciário produz impacto nas políticas públicas, nem sempre positivo. Enquanto na ação coletiva é possível discutir contexto, o quadro epidemiológico, as opções terapêuticas, as dificuldades de financiamento, por exemplo, na demanda individual a pretensão aparece descolada da política pública correspondente, imune a ela.

 No mesmo sentido, Júnior (2005) elucida que o processo coletivo da ACP é “eficaz mecanismo de materialização do controle judicial de políticas públicas”.

 A idéia também foi defendida no artigo “Desjudicializando o Direito à Saúde”, considerando a ação civil pública como alternativa à contemporânea realidade da judicialização da saúde. O texto apontou que as demandas coletivas podem minorar o grande número de ações individuais no judiciário brasileiro, citando como exemplo a Ação Civil Pública que tramitou sob número dos autos 2011.51.01.007197-7. [8]

 Tal ação foi ajuizada em 2012 pela Defensoria Pública da União em face da União, do estado e do município do Rio de Janeiro, e postulou o fornecimento de implantes eletrônicos auditivos de alta tecnologia, restando frutífera em seus pedidos.

 Cabe destaque especial ao ponto do julgado procedente que ordenou fornecimento dos tratamentos com abrangência em nível nacional, relativizando o art. 16 da Lei 7345/85, qual prevê amplitude exclusivamente em nível territorial. Assim, os mesmos benefícios foram estendidos a todos os deficientes auditivos do Brasil, em que pese a ação tenha tramitado sob a égide do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

 Percebe-se que esse último detalhe da decisão conferiu maior eficiência ao processo. Caso fosse seguida a disposição legal, os efeitos do julgado ficariam delimitados pela competência territorial do órgão prolator, impedindo maiores benefícios à saúde pública no Brasil. Inexistindo os efeitos da abrangência nacional, outras ações civis públicas congêneres precisariam ser ajuizadas nos demais territórios, relatando mesma causa de pedir, passando por semelhante processo de conhecimento, para que só então, em caso de procedência, após trânsito em julgado, fossem constituídos os mesmos direitos já concedidos no Rio de Janeiro. Por outro lado, em caso improcedência, os usuários do SUS receberiam tratamentos diferentes pelo simples fato de morarem em territórios distintos, hipótese ainda mais lesiva do ponto de vista jurídico.

 A restrição à eficácia da tutela coletiva aos limites territoriais é alvo de diversas críticas por parte da doutrina. Dentre elas, a crítica de Nassar (2014, p. 20) merece prosperar:

A coisa julgada representa a qualidade de indiscutibilidade de que se reveste o efeito declaratório da sentença de mérito. Não se trata de um efeito da sentença, mas de qualidade que se agrega a certo efeito. Ora, pensar que uma qualidade de determinado efeito só existe em determinada porção do território, seria o mesmo que dizer que uma fruta só é vermelha em certo lugar do país. Ora, da mesma forma que uma fruta não deixará de ter sua cor apenas por ingressar em outro território de federação, só se pode pensar em uma sentença imutável frente à jurisdição nacional, e nunca em face de parcela dessa jurisdição. Se um juiz brasileiro puder decidir novamente causa já decidida em qualquer lugar do Brasil (da jurisdição brasileira), então é porque não existe, sobre a decisão anterior, coisa julgada. O pensamento da regra chega a ser infantil, não se lhe podendo dar nenhuma função ou utilidade. (apud Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, 2004, p. 818)

 Outra jurisprudência sobre o tema da ACP aplicada em prol da saúde foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No caso o Recurso Extraordinário (RE) n. 605533 foi julgado procedente, definindo a legitimidade do Ministério Público para postular direito à saúde individual por meio de ACP, prevalecendo argumento de que o pedido, embora verse sob o caso concreto de um usuário do SUS, atinge também aos demais portadores da mesma patologia, tendo a menção específica ao único caso cunho meramente exemplificativo, já que os efeitos da tutela no fim produziriam conseqüências ao coletivo, preenchendo os requisitos da ação civil pública. [10]

 No supracitado Recurso Especial foi reconhecida repercussão geral à questão porque concomitantemente ao seu tramite outros 1.897 processos também estavam aguardando decisão sobre mesma matéria, o que demonstra a dificuldade do Órgão Fiscal da Lei em demandar por tratamentos aos usuários do SUS, bem como a grande contribuição da demanda coletiva para efetivação da saúde pública.

 Outro exemplo da pertinência da ACP para o tema deste estudo pode ser constatado em ação ajuizada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro contra o Município da respectiva capital carioca, que trouxe à baila violações massivas de direitos causadas pela situação caótica do Hospital Salgado Filho. [11]

 A ação está tramitando no STF, mediante Recurso Extraordinário n. 684612, pois foi reconhecida a repercussão geral à discussão sobre os limites da independência entre os Poderes para adoção de políticas públicas garantidoras de direitos constitucionais.

 Portanto, trata-se de mais uma possível contribuição da ACP que pode significar importante passo rumo à qualidade da saúde nacional, na medida em que o acórdão da corte suprema terá eficácia erga emnes, gerando precedente sobre o ativismo judicial e a interferência às políticas públicas do SUS.

 Ademais, outra ideia que traria maior potencial para referida modalidade de tutela coletiva em favor da saúde consiste na criação do Cadastro Nacional de Ações Coletivas. O cadastro já possui aplicação em outros países, e tem como função a reunião de todas as demandas coletivas já ajuizadas em território nacional, passadas ou não em julgado. Com isso, busca-se integral publicidade às jurisprudências, com o condão de evitar litispendência e reunir demandas já em trâmite, em caso de conexão ou continência. [12]

 No Brasil, as tutelas transindividuais ainda são desmoralizadas, não existe ampla publicidade aos seus resultados, havendo carência de organização e repercussão dos temas para os meios jurídico e leigo. Logo, com o investimento no Cadastro Nacional dar-se-ia divulgação às informações referentes às causas envolvendo saúde pública, sobre quais causas já possuem entendimento sedimentado, quais as respectivas abrangências dos julgados, e quais os seus efeitos práticos aos usuários do SUS.

 Já existem algumas medidas em prol de um Cadastro Nacional brasileiro, como a publicação da Resolução Conjunta n. 2, em 21 de Junho de 2011, pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Ministério Público, quando foi determinada a criação do Cadastro Nacional de Informações de Ações Coletivas, Inquéritos Civis e Termos de Ajustamento de Conduta. Em razão da normativa, foi criado o Portal de Direitos Coletivos, mas o site atualmente só disponibiliza acesso aos cadastros de inquéritos e termos de ajustamento, ainda restando ausente o cadastro das ações coletivas. [13]

 Diante do exposto, resta claro que a tutela coletiva da Ação Civil Pública é de grande relevância para a melhoria da qualidade da saúde no Brasil, em que pese ainda restem reajustes jurídicos e culturais a serem feitos a fim de extrair o maior proveito possível de tal ferramenta processual.


REFERÊNCIAS

[1] ALMEIDA, João Batista de. Aspectos controvertidos da ação civil pública. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

[2] BRASIL. Lei nº 7347 de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. Disponível em: <“>http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7347orig.htm>; Acesso em: 02.abr.2019.

[3] BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <“>http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm>; Acesso em: 02.abr.2018

[4] CARVAS, Felipe. Cadastro Nacional de Ações Coletivas. Disponível em: <“>https://www.pucsp.br/tutelacoletiva/download/cadastro_nacional_pessoas_coletivas.pdf>; Acesso em: 27.04.2018

[5] MADEIRA, Thereza Catharina Afonso Ferreira. A ação civil pública como instrumento do Ministério Público na defesa de interesses individuais para tratamentos de saúde. Boletim Científico ESMPU, Brasília, a. 17 – n. 52,– jul./dez. 2018. Disponível em: <https://escola.mpu.mp.br/publicacoes/boletim-cientifico/edicoes-do-boletim>

[6] FERNANDES NETO, Antônio Joaquim. Desafios da promotoria na saúde coletiva. In: Chaves, Cristiano; Alves, Leonardo Barreto Moreira; Rosenvald, Nelson (coords.). Temas atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2010.

[7] FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de políticas públicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

[8] ALÔ, Bernardo dos Reis. Desjudicializando o direito à saúde – O papel da defensoria pública nesse processo. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-CEJ_n.70.09.pdf>

[9] Nassar, Marcos. Os efeitos da sentença coletiva e a restrição do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública. Mudança de jurisprudência no STJ?. Boletim Científico n. 42/43 – Janeiro/Dezembro 2014. Disponível em: <http://boletimcientifico.escola.mpu.mp.br/boletins/boletim-cientificon42-43-janeiro-dezembro-2014/os-efeitos-da-sentenca-coletivaea-restricao-do-art-16-da-lei-da-ação-civil-pública-mudanca-de-jurisprudencia-no-stj>

[10] Supremo Tribunal Federal. STF Afirma Legitimidade do MP para Fornecer Medicamentos. Dados disponíveis em: <“>http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386926>; Acesso em: 02.abr.2019

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Civil Pública. Recurso Extraordinário n. 684612. Ministério Público do Rio de Janeiro e Município do Rio de Janeiro. Relator: Ministro: Ricardo Lewandowski. Disponível em: <“>http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4237089>; Acesso em: 02.abr.2019

[12] ALÔ, Bernardo dos Reis. Desjudicializando o direito à saúde – O papel da defensoria pública nesse processo. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-CEJ_n.70.09.pdf>

[13] BRASIL. Resolução Conjunta n. 2 de 21 de Junho de 2011. Institui os cadastros nacionais de informações de ações coletivas, inquéritos e termos de ajustamento de conduta, e da outras providências. Disponível em: <“>http://www.cnmp.gov.br/portal/images/stories/Normas/Resolucoes/Resoluo_conjunta__02_de_21_de_junho_d…; Acesso em: 27.04.2019

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