“o direito de acesso ao Direito, pilar fundamental do Estado de Direito, vem sofrendo profundas transformações. Deixou de ser um direito de acesso ao Direito através do direito de acesso aos tribunais para passar a ser um direito de acesso ao Direito, de preferência sem contato ou sem passagem pelos tribunais.” (CEBOLA, Cátia Marques)
Resolução extrajudicial de conflitos
Inicialmente, cumpre esclarecer que a resolução extrajudicial dos conflitos, prevista no art. 3º, § 2 e § 3 do CPC, trata-se de forma mais rápida e menos onerosa que a via litigiosa. Sobre os meios extrajudiciais de conflitos leciona Correa (2016):
Ao incorporar conciliação e mediação como etapas obrigatórias do processo civil, o legislador brasileiro promoveu uma aproximação do nominado “Tribunal multiportas”, que se caracteriza como instituição capaz de redirecionar os casos conflituosos para o método de resolução mais apropriado, ao invés de tomar o processo judicial como meio mais adequado para todas as controvérsias. (apud GONÇALVES, 2014, p. 13)
O indigitado conceito de “Tribunal Multiportas”, complementa Crespo (2012), serve à finalidade precípua de possibilitar “algo tão fundamental como participar na resolução de seus próprios conflitos”. Além disso, “a experiência do Tribunal Multiportas também pode revelar-se uma ferramenta poderosa para mobilizar os cidadãos a deixarem de ser somente espectadores para se tornarem protagonistas do seu próprio destino em outras áreas.”
Dessarte os meios amigáveis de resolver conflitos proporcionam papel mais ativo às partes e funcionam de maneira desburocratizada. Agora, resta abordar como tais métodos ganham espaço nas discusssões que envolvem o tema saúde pública no Brasil.
Resolução extrajudicial de conflitos aplicada em favor da saúde pública
A prestação da saúde envolve alguns pontos peculiares, gerando multiplicidade de conflitos, conforme explicam Delduque e Castro (2006):
As relações em saúde transcendem a ótica bilateral do médico com o paciente, para envolver muitos outros atores presentes em um sistema de saúde, advindo, daí, conflitos de toda a ordem, internos e externos ao sistema, criando condições para a judicialização. Conflitos internos (como os assistenciais, organizativos e conflitos entre profissionais) geram desgastes e judicialização, como também fazem os conflitos gerados fora do sistema, mas com reflexos diretos dentro dele, assim como os conflitos sociais e conflitos legais igualmente geram a judicialização.
Com isso, no Brasil a inovação das resoluções de conflitos pela via consensual está sendo aplicada também aos requerimentos por tratamentos de saúde, mediante iniciativas como o projeto da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS), criado no Rio de Janeiro, em 2013. [4]
Tal órgão reúne membros da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro e da Defensoria Pública da União, procuradores do estado e do município do Rio, equipes de apoio técnico das Secretarias de Saúde do estado e município cariocas, dentre outros participantes.
O objetivo principal é a promoção do atendimento aos hipossuficientes que demandam pela prestação do serviço de saúde pública, através da celebração de acordos entre o SUS e os seus respectivos usuários. Tais pactos podem propiciar a entrega dos medicamentos, agendamento de procedimentos cirúrgicos e exames médicos, dentre outras medidas pertinentes a serem reduzidas a termo.
Fomentando debates institucionais, a iniciativa também preza pela formulação de propostas para alteração e implementação das políticas públicas prestadas pelo SUS, de modo amplo, melhorando o serviço de saúde prestado a todos, para além dos simples acordos bilaterais entre usuário e SUS.
Para melhor qualidade dos serviços prestados a Defensoria Pública fica responsável pela coordenação das atividades oferecidas. Os membros da Secretaria de Saúde oferecem orientação e análise técnica aos assistidos, elaboram pareceres sobre os casos levados à pauta, bem como instauram procedimentos administrativos com objetivo de ensejar cumprimento ao que foi determinado no acordo, com a solicitação das contratações dos serviços a serem fornecidos. Já os procuradores estaduais e municipais, bem como os membros do Judiciário, atuam como mediadores. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também exerce fundamental atividade de supervisão e coordenação da atividade de mediação nas audiências.[5]
O método adotado pela Câmara tem-se mostrado cada vez mais eficiente. Em 2013, esse projeto contava com 67 profissionais, e havia realizado 1493 atendimentos, sendo que 35,26% destes obtiveram sucesso extrajudicialmente. Nos próximos anos a procura pela solução amigável e os resultados positivos auferidos ascenderam, sendo realizados 13.644 atendimentos em 2017, dos quais 53,62% encontraram resolução pela via extrajudicial. Em 2018 foram 9.657 atendimentos, dos quais 68,09% resolveram-se extrajudicialmente. [6]
Segundo a CRLS do Rio de Janeiro o maior desafio encontrado para implementação da técnica de resolução extrajudicial foi a insegurança dos próprios assistidos em confiar na solução alternativa, administrativa e consensual, pois ainda persiste a falsa crença de que apenas o título executivo judicial é capaz de alcançar o fornecimento do tratamento almejado. [7]
Todavia, os responsáveis afirmam que desenvolveram um estudo crucial para superação desse obstáculo. Sob autoria da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, com embasamento nos dados positivos já alcançados pelo método alternativo de resolução, os operadores da Câmara superaram gradativamente a resistência infundada para com a utilização do procedimento extrajudicial. O estudo demonstrou em dados reais que o tempo médio de duração do processo judicial é superior ao tempo médio para resolução do conflito através da Câmara, em que pese os resultados positivos igualmente auferidos pelo método extrajudicial.[8]
Sobre a superação superestimada crença nos efeitos positivos da judicialização, disserta Cebola (2013, p. 273) que “o direito de acesso ao Direito, pilar fundamental do Estado de Direito, vem sofrendo profundas transformações. Deixou de ser um direito de acesso ao Direito através do direito de acesso aos tribunais para passar a ser um direito de acesso ao Direito, de preferência sem contato ou sem passagem pelos tribunais.”
Outro desafio a ser vencido para que a via extrajudicial de resolução dos conflitos possa representar melhorias mais significativas em prol da saúde nacional reside na criação de outras câmaras de resolução de conflitos no Brasil, isso porque existe apenas outro órgão, além do já mencionado, localizado em Sergipe.[9]
Trata-se da Câmara de Resolução de Litígios de Saúde da Defensoria Pública de Sergipe, que também está alcançando ótimos resultados nas resoluções administrativas. Em 2018, entre os meses de janeiro e julho, 52,93% dos procedimentos de saúde concedidos por intermédio da Defensoria de Sergipe foram resultado dos acordos extrajudiciais pactuados na CRLS, ensejando economia de R$ 6,5 milhões aos cofres públicos.[10]
Em outro norte, técnica diversa para resolução extrajudicial de conflitos de saúde pública no Brasil consiste na Mediação Sanitária, com desenvolvimento avançado no estado de Minas Gerais, através da ação institucional denominada “Mediação Sanitária: Direito, Saúde e Cidadania”. A iniciativa “criada pela Administração Superior do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, sob a coordenação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde (CAOSAUDE), está atualmente regulamentada pela Resolução PGJ nº 78, de 18 de setembro de 2012.” [11]
As atividades desempenhadas pelo órgão consistem em encontros para melhoria do sistema de saúde pública, conforme Assis (2013) expõe nas explicações adiante parafraseadas:
Na prática, a ação de Mediação Sanitária se dá de ofício ou por provocação. No primeiro caso, de natureza preventiva, faz-se um planejamento estratégico para atuação solidária, em cada uma das regiões de saúde, no propósito da (re) organização das ações e serviços de saúde, no enfrentamento dos problemas coletivos de saúde e no fortalecimento regional. Na forma provocada, que poderá ser solicitada por quaisquer dos atores sociais, leva-se em consideração principalmente as especificidades do problema que, normalmente já se encontra consolidado, em processo de tensão ou conflito, às vezes já judicializado, dependente de emergencial interação articulada, democrática, por todos seus participantes
Em suma, nos encontros do projeto “Mediação Sanitária” os assuntos são deliberados e registrados em ata, o que possibilita responsabilidade coletiva na execução do que foi pactuado. A operacionalização das deliberações fica a cargo de uma comissão, micro ou macrorregional, de trabalho, cujo caráter é permanente, e que é instituída ao término das reuniões. Desse modo, mais de 70 reuniões já foram realizadas em todo o estado de Minas Gerais, produzindo resultados em benefício à saúde pública.
Percebem-se algumas diferenças entre as Câmaras de Resolução e a Mediação Sanitária, embora ambas possuam como objetivo elevar o nível da qualidade do serviços ofertados pelo SUS, com debates institucional e interpessoal proporcionados pelas inovadoras resoluções extrajudiciais de conflitos.
REFERÊNCIAS
[1] CORREA, Priscilla P. Costa. As Demandas Repetitivas e os Grandes Litigantes: Possíveis Caminhos para a Efetividade do Sistema de Justiça Brasileiro. Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira – Enfam. ISBN 978-85-7248-184-7. Disponível em: <https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2016/08/Demandas_repetitivas__Vanila_Cardoso.pdf>
[2] CRESPO, Mariana Hernandez. TRIBUNAL MULTIPORTAS: Investimento no Capital Social para Maximizar o Sistema de Solução de Conflitos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. ISBN: 978-85-225-0959-1 Disponível em: <“>https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10361/Tribunal%20Multiportas.pdf>; Acesso em: 28.abr.2019
[3] DELDUQUE, Maria Célia; CASTRO, Eduardo Vazquez. A Mediação Sanitária como Alternativa Viável à Judicialização das Políticas de Saúde no Brasil. Disponível em: <https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S0103-11042015000200506HYPERLINK “https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S0103-11042015000200506&script=sci_arttext”&HYPERLINK “https://www.scielosp.org/scielo.php?pid=S0103-11042015000200506&script=sci_arttext”script=sci_arttext>
[4] ALÔ, Bernardo dos Reis. Desjudicializando o direito à saúde – O papel da defensoria pública nesse processo. Disponível em: <“>http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_pro…; Acesso em: 02.abr.2019
[5] Idem.
[6] Defensoria Pública da União. Defensoria Pública da União Soluciona mais de 63 % dos casos no RJ. Dados disponíveis em: www.dpu.def.br/noticias-rio-de-janeiro- slideshow/46482-dpu-soluciona-mais-de-63-dos-casos-de-saúde-no-rj-extrajudicialmente> Acesso em: 02.abr.2019.
[7] Instituto Innovare. Câmara de Resolução de Litígios de Saúde. Dados disponíveis em: <“>https://www.premioinnovare.com.br/praticas/l/câmara-de-resolucao-de-litigios-de-saúde-crls>; Acesso em: 02.abr.2019.
[8] Idem.
[9] CEBOLA, Cátia Marques. La mediación. Madrid: Marcial Pons, 2013.
[10] Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos. SE: Secretários de Saúde enaltecem Câmara de Resolução de Litígios de Saúde da Defensoria Pública. Dados disponíveis em: <“>https://www.anadep.org.br/wtk/página/materia?id=38423>; Acesso em: 02.abr.2019
[11] Idem.
[12] ASSIS, Gilmar de. A Ação Institucional de Mediação Sanitária: Direito, Saúde e Cidadania. Cad. IberAmer. Direito. Sanit., Brasília, v.2, n.2, jul./dez. 2013. ISSN 2317-8396. Disponível em: <“>https://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/index.php/cadernos/article/view/98/140>; Acesso em: 28.abr.2019