Crédito pela ilustração

 De modo geral, quando é lançado olhar superficial sobre o julgamento procedente de demanda judicial por saúde pública, concedendo-se o pedido do autor, tem-se uma primeira impressão positiva. Afinal, no Brasil o Sistema Único de Saúde tem o dever de cuidar de todos. 

 Contudo, imperioso fazer algumas ressalvas, apurando-se todo o contexto ao redor, sem olvidar-se que a Defensoria Pública ainda está longe de alcançar a todos, bem como que a Constituição Federal de 1988, nos termos do art. 196, positivou baliza segundo a qual a saúde deve ser prestada de forma universal e igualitária, mediante políticas públicas.

Ativismo judicial  

 Conforme leciona Clève (2011, p. 896) “a Constituição de 1988 prestigiou o Poder Judiciário e, mais do que isso, ofereceu a ele meios para, de modo eficaz, fiscalizar a atuação dos demais Poderes do Estado e dar vazão ao exercício da cidadania”. O autor ainda se posiciona favoravelmente aos controles judiciais, afirmando que “esses mecanismos são de extrema importância, porque, a um, permitem amplo acesso dos cidadãos à Justiça, e, a dois, permitem decisões judiciais únicas incidentes sobre todo um universo coletivo, o que implica celeridade e economia processuais.” [1]

 Como fundamento a tais interferências judiciárias tem-se o art. 5º, inciso XXXV, da Lei Maior, que prega a inafastabilidade da tutela jurisdicional de qualquer lesão ou ameaça a direito. Por isso é facultado ao Terceiro Poder fazer objeções à atuação do Legislativo, já que para alcançar o objetivo da efetivação da saúde, como por exemplo, podem ser necessárias mudanças e inovações na lei, sob pena de lesão ou ameaça ao direito. Assim, a legitimidade do juiz decorre da própria Constituição, sendo possível, inclusive, que ele anule os atos das figuras políticas, eleitas democraticamente por milhões de votos, desde que em decisão fundamentada, expondo sua racionalidade, que deve ser pautada nos ditames constitucionais e legais. Daí a importância da fundamentação da decisão judicial.

 Segundo os estudos de Barroso (2012) [2], as posturas ativistas mencionadas podem se manifestar em casos concretos das seguintes maneiras:

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.

 Logo, resta claro que o Judiciário pode até mesmo realizar interferência em face de políticas públicas do Executivo, como por hipótese, aquelas políticas destinadas à concretização do dever incumbido ao SUS, consistente na prestação da saúde pública.

 Sob a égide de ponto de vista mais crítico em face da responsabilidade do Judiciário quando realiza tais interferências, Clementino (2016) [3] acrescenta:

Como resultado da ineficiência estatal, e tendo em vista o amplo acesso à justiça assegurado pela Constituição Federal, as expectativas frustradas são transferidas do debate social para o âmbito jurisdicional e se tornam um problema de gestão judiciária. Em outras palavras, o Judiciário assume um ônus de mediador de conflitos estruturais, porém na desconfortável posição institucional de não participar ativamente da concepção da política pública e de não ostentar a competência de ordenar a despesa pública.

 Uma vez exposto do que se trata o ativismo judicial em comento, urge agora comentar amplamente a razão pela qual por vezes tal prática pode acabar por prejudicar a saúde pública, muito embora a atitude do juiz, considerada de forma isolada, seja antagônica a isso.

Insuficiência da assistência jurídica gratuita como óbice aos bons préstimos do ativismo judicial à saúde pública

 Embasando este tópico, inicialmente deve ser exposto o levantamento “Síntese de Indicadores Sociais 2017”, realizado pelo IBGE a nível nacional.[4]

 O levantamento constatou que no Brasil existem aproximadamente 50 milhões de pessoas, o que equivale ao percentual de 25,4% da população, sobrevivendo com renda familiar de R$ 387,07 (trezentos, e oitenta e sete reais, e sete centavos).

 Pois bem, voltando ao tema central, por óbvio somente pessoas munidas de ferramentas para postular em juízo conseguem o acesso à saúde pela via judicial. Quanto às tais ferramentas, trata-se do sentido amplo da palavra, fazendo referência à questão financeira para contratar os serviços de um advogado privado, assim como à questão de estrutura e aparelhamento do Estado no local onde se vive, para usufruir do direito constitucional de assistência jurídica e gratuita, mediante serviços prestados pela Defensoria Pública, em caso de hipossuficiência, consoante art. , LXXIV, da CF/88.

 Os defensores públicos são peça fundamental para observância da garantia da assistência jurídica integral e gratuita, a ser prestada de forma universal e coletiva. Como decorrência disso, a Emenda Constitucional n. 80/2014, adicionou ao art. 98 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 a programação quanto ao número de defensores que devem atuar em cada unidade jurisdicional, sendo proporcional ao quantitativo das respectivas demandas e ao tamanho das populações, estabelecendo ainda que, dentro do prazo de 8 (oito) anos, os estados, o Distrito Federal, e a União deveriam contar com defensores em todas as suas unidades jurisdicionais.[5]

 O serviço da Defensoria utiliza critérios sócio-econômicos para filtrar os assistidos que se enquadram na condição de hipossuficientes, prestando seus serviços exclusivamente às pessoas que de fato não possuem recursos financeiros para pagar por advogados privados.[6]

 Esse serviço é a principal forma de ingresso ao Judiciário à disposição da classe mais pobre, que por certo também é a que mais sofre com a prestação inadequada do direito à saúde.

 Entrementes, o “IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil” revelou que o pleno alcance à população carente ainda é um objetivo distante, consoante os seguintes dados sobre o grau de abrangência nacional da Defensoria Pública, referentes ao ano de 2014. Tal pesquisa levantou informações inclusive através de questionários levados à baila dos defensores, colhendo informações formais e informais a respeito da amplitude e qualidade do serviço de assistência judiciária gratuita nacional.[7]

 A média nacional das comarcas em que houve atendimentos da Defensoria foi de apenas 40% do total. Já a abrangência em relação às unidades jurisdicionais existentes nas quais estiveram presentes as Defensorias Públicas Estaduais foi de 13%.

 Mesmo no que tange às comarcas que possuem Defensoria não é possível dizer que tais dados positivos representam o pleno acesso da população à Justiça, pois foi revelado que 17,8% dos defensores trabalhavam em unidades de difícil acesso aos assistidos que dependem de transporte público para locomoção, e outros 35,9% dos defensores indagados estavam trabalhando em locais que não possuem o devido tratamento de inclusão às pessoas portadoras de deficiências restritivas de locomoção.

 Quanto à aparelhagem a disposição para o trabalho dos defensores, 11,3% dos profissionais não possuíam sequer gabinete de trabalho; 37,4% não possuíam espaço exclusivo para atendimento aos assistidos; 40% dos defensores consideraram o aparelhamento disponível – itens para trabalho como computadores – regular, ruim, ou inexistente; 62,6% julgaram a infraestrutura física do local de trabalho como regular ou ruim; 56,5% consideraram o espaço imobiliário regular ou ruim; 16,4% julgaram inexistir sistema informatizado no local de trabalho; 21,4% julgaram o sistema informatizado existente como ruim; 57,2% afirmaram que o sistema de acesso à internet existente no local de trabalho é ruim; e, por fim, 2,9% dos entrevistados alertaram nem ao menos existir acesso à internet nas respectivas Defensorias Públicas em que estavam loteados.

 No mesmo sentido, os dados apurados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) demonstraram que até 2013 o deficit total de defensores Públicos no Brasil era de 10.578 profissionais. Essa pesquisa utilizou como parâmetros o ideal segundo o qual as Defensorias devem ter, para um serviço público de qualidade mínima, a proporção de um defensor público atuante para cada 10.000 pessoas, sendo que só foram consideradas na pesquisa a população com renda de até três salários-mínimos. [8]

 Portanto, com os resultados negativos a despeito da abrangência da instituição defensora, as pesquisas acima estão ratificando que o ativismo judicial acaba excluindo parte da população. Vê-se que, na realidade, somente uma parte favorecida da população tem acesso efetivo aos seus direitos por meio do ativismo.

 Deveras não se deve olvidar que o crescente ativismo judicial no Brasil, relacionado à efetivação da saúde pública, não se confunde com o aumento do acesso à saúde pública pela população em sentido amplo, pois de modo geral os efeitos das decisões judiciais favorecem exclusivamente àqueles que figuram nos polos ativos dos respectivos processos.

 Por fim, podemos construir as seguintes premissas, apurando posteriormente o seguinte raciocínio, respectivamente: (I) a classe mais pobre não pode socorrer-se à alternativa de usar os seus próprios recursos financeiros, sem prejuízo de sua subsistência, para pagar os serviços privados de advocacia; (II) grande parte da população não possui, ou possui de forma deficitária, os serviços gratuitos de advocacia; e, (III) se a judicialização for utilizada demasiadamente muitos recursos, já escassos, serão desviados da pasta do Executivo para cumprimento das sentenças condenatórias. Em corolário, a conclusão de que a soma de todas essas premissas resulta na privação total do gozo à saúde em desfavor de parte da população, já que ambas as vias – judicial e comum – acabam renegadas, direta ou indiretamente, a tais pessoas.


REFERÊNCIAS

[1] CLÈVE, Clèmerson Merlin. Sobre a ação direta de constitucionalidade. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; BARROSO, Luís Roberto (Org.). Doutrinas essenciais: Direito Constitucional. Vol. V. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

[2] BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. Exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

[3] CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. As demandas repetitivas de direito público e o princípio da procedimentalização da isonomia Devido Processo nas Demandas de Direito Público. In: Vânila Cardoso André de Moraes (Coord.). As Demandas Repetitivas e os Grandes Litigantes: possíveis caminhos para a efetividade do sistema de justiça brasileiro. ISBN 978-85-7248-184-7. Brasília. Enfam, 2016. Disponível em: <https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2016/08/Demandas_repetitivas__Vanila_Cardoso.pdf>

[4] OLIVEIRA, de Nielmar. IBGE: 50 milhões de brasileiros vivem na linha de pobreza. Disponível em:<http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-12/ibge-brasil-tem-14-de-sua-populacao-vivendo-na-linha-de-pobreza> Acesso em: 02.abr.2019.

[5] BRASIL. Emenda Constitucional n. 80 de junho de 2014. Altera o Capítulo IV – Das Funções Essenciais à Justiça, do Título IV – Da Organização dos Poderes, e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. Disponível em: <“>http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/emendas/emc/emc80.htm>; Acesso em: 02.mai.

[6] BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras providências. Disponível em: <“>http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp80.htm>; Acesso em: 30.abr.2019

[7] Ministério da Justiça; Secretaria de Reforma do Judiciário. IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil. ISBN: 978-85-5506-021-2. Brasília. 2015. Disponível em: <“>https://www.anadep.org.br/wtksite/downloads/iv-diagnostico-da-defensoria-pública-no-brasil.pdf>; Acesso em: 02.abr.2019.

[8] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Mapa da Defensoria Pública no Brasil. Disponível em: <“>http://www.ipea.gov.br/sites/mapadefensoria/deficitdedefensores>; Acesso em: 28.abr.2019.

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